sexta-feira, março 04, 2005
A Voz ao Povo de Entre-os-Rios
Faz hoje 4 anos. Caiu uma ponte, morreram 59 pessoas. Partilho o "texto de revolta" que escrevi em Março de 2001:
"Geralmente todos os grandes acidentes surgem na sequência de um número elevado de situações que, tragicamente, fazem coincidir os seus efeitos nefastos num determinado momento. Também relativamente à “tragédia da ponte” terá acontecido o mesmo: o Inverno tempestuoso, a fiscalização insuficiente, as descargas excessivas das barragens, a extracção e a acumulação das areias, a idade da ponte, a utilização que não estava prevista... todos os factores juntos, fazendo sentir os seus efeitos crónicos e agudos, provocaram a queda. Provavelmente nenhum deles isoladamente seria suficiente e por isso deveremos evitar simplificações dos acontecimentos que sejam injustas.
O que há a fazer neste momento, para além de tentar atenuar o irremediável, é evitar que novas situações semelhantes surjam procurando soluções de fundo. Podemos sempre instalar modernos aparelhos de controlo em todas as pontes e barragens, monitorizados à distância por numerosos técnicos qualificados e atentos, nacionais e estrangeiros, realizar visitas in loco todos os meses e inspecções rigorosas e exaustivas. Fazer grandes campanhas de sensibilização junto dos areeiros explicando-lhes os seus limites, que o lucro fácil é pecado, e prender os infractores, criar novos institutos e novas leis, mais quadros técnicos, novos programas de intervenção e fiscalização, fazer mais uma rodagem nas posições dos políticos. Tudo deveria ser começado pela substituição de todas as pontes com mais de cinco anos por pontes novas. Sem esquecer de controlar o clima e o azar.
Um interessante passatempo pode ser dividir as propostas acima em ingénuas, de fachada, insuficientes, de comprovada ineficácia, demasiado caras, complexas, impossíveis ou apenas irónicas.
Se pudéssemos voltar atrás no tempo (o que nem sequer com 10 milhões de pessoas a desejar ao mesmo tempo foi possível), o que é que teria de facto evitado que a ponte caísse? E já agora que fosse simples e barato?
Na verdade teria bastado ouvir os avisos das populações. E foram muitos e repetidos, chegando ao cúmulo de ter pessoas a serem chamadas ao tribunal no dia em que aparecia o primeiro corpo, acusadas de terem cortado o trânsito na ponte para chamar a atenção para a necessidade urgente de intervir.
Só as pessoas que vivem ao lado da ponte, que por lá passam todos os dias, que tantas horas passaram a olhar para ela, a contar histórias com a ponte como personagem, a ver trabalhar os areeiros e passar os camiões, a sentir os tremores e os ruídos e até os cheiros, dia após dia, só essas pessoas podem sentir o que nenhuma equipa de manutenção pode averiguar, o que nenhum técnico pode prever, o que nenhum político pode alguma vez reparar, e mesmo sem saber explicar porquê, essas pessoas sabiam que a ponte estava em perigo. E disseram-no.
E ninguém ouviu e ninguém fez nada. Porque em Portugal não são os cidadãos que mandam. É a tentação do lucro fácil, o bloqueio da burocracia, a sede de protagonismo dos políticos, na defesa de interesses que nada têm a ver com os das populações. Se as pessoas pudessem participar nas decisões colectivas que afectam directamente os seus interesses, se tivessem as suas cartas e abaixo-assinados à administração considerados, se as ouvissem, se fossem promovidos inquéritos de opinião para definir prioridades de investimento, promovidos referendos e assembleias... se os técnicos e os políticos tivessem parado para ouvir os berros de aviso dos cidadãos de Castelo de Paiva e intervindo de acordo, não havia idade da ponte, areeiro ou mau tempo que a deitasse abaixo, e nem sequer eram necessárias inspecções.
Este é o verdadeiro motivo estrutural e fundamental porque a ponte caiu: porque em Portugal não são as pessoas que mandam.
Desenganem-se os que acham que é uma questão de interioridade, porque nas cidades também as pessoas não são ouvidas e, se se gasta mais, também se gasta muito pior, assim como não são melhores os dramas diários que se vivem.
Para inverter esta situação é preciso admitir que a sabedoria colectiva dos cidadãos, integrada com o conhecimento técnico, vale mais que a decisão isolada do líder político fechado no gabinete, por mais reflectida e isenta que esta seja.
A possibilidade que temos hoje de de vez em quando escolher o menos mau dos candidatos eleitorais e votar em referendos esotéricos sabe a pouco e não é motivador. Sem formação nem informação, sem qualquer possibilidade real de influenciar as decisões, não se pode esperar que as pessoas assumam a política e participem. Quando em situação de desespero ou alvo de manipulação, os cidadãos acabam por optar pela única via que tem dado resultados: queimar pneus e chamar a televisão (aliás em ordem inversa). Obviamente esta é uma forma deturpada e não desejável de participação.
A implementação de um novo modelo de decisão participativa seria fácil, porque hoje já existem as ferramentas necessárias, mesmo em Portugal, e é impossível fechar os olhos aos exemplos de sucesso. Além do mais os técnicos, há muito bloqueados pela politiquice, receberiam certamente de braços abertos as prioridades definidas directamente pelos cidadãos.Mas no final talvez fôssemos obrigados a concluir que os políticos, tal qual os conhecemos, afinal não fazem falta nenhuma, antes pelo contrário. Que bem os poderíamos substituir por técnicos treinados para ouvir os interesses dos cidadãos. Poupando-se muito dinheiro, muita paciência e evitando que muitas das pontes caíssem."
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