quarta-feira, janeiro 10, 2007

Uma Escola de Vida


Em 2007 a ROM faz 50 anos. Esta é a segunda prenda que lhe dou (a primeira está aqui): um artigo que escrevi para publicação na revista 2Pontos. Aqui fica, em primeira mão, em estilo "velho lobo do mar a abrir o álbum das recordações".

Reserva Ornitológica de Mindelo
Uma Escola de Vida

É difícil escrever sobre a Reserva Ornitológica de Mindelo, principalmente para quem está por ela apaixonado. As palavras surgem sempre demasiado curtas. A ROM, como lhe chamamos, não é um paraíso, apesar de ter uma Natureza deslumbrante. Não é um inferno, apesar de ser um mo(n)struário de atentado ambientais. Se quisermos ser pedagógicos, podemos afirmar que é um espaço privilegiado para ensinar ciências naturais e humanas e, acima de tudo, sentir o que foram os últimos cinquenta anos de desenvolvimento em Portugal.
De facto (ainda) está lá tudo. A começar pelo Portugal Rural, que existia em 1957 quando a ROM foi criada. Naquela altura os grandes lavradores-proprietários de Mindelo entretinham-se a montar redes nas dunas para apanhar as rolas que passavam nas suas rotas migratórias. Diz-se que com artes únicas no mundo. Num certo dia chegou o Prof. Santos Júnior da Universidade do Porto, o primeiro ornitólogo português, e fez com eles o seguinte pacto: ele criaria uma área protegida, para defender as aves que eram na altura a paixão dos Mindelenses e, em troca, eles continuariam a apanhar aves mas apenas para anilhagem científica. E foi assim que nasceu a primeira área protegida: no dia 2 de Setembro de 1957, com 600 hectares e, imagine-se, com o apoio expresso de todos os proprietários.
Um parêntesis para esclarecer os leitores mais atentos e curiosos: num artigo publicado num número anterior desta revista pode ler-se que o Parque Nacional da Peneda-Gerês foi a primeira área protegida. Não é erro, visto que tudo depende dos critérios. De facto foi este, em 1971, a primeira área criada ao abrigo da primeira lei de conservação da Natureza (de 1970). Mas 14 anos antes já a ROM existia, criada ao abrigo do regime florestal, com plano de gestão, fiscalização capaz e muita actividade. De facto esses 14 anos foram os mais “produtivos” da ROM, já que esta se afirmou como um centro de anilhagem de renome mundial (foi a primeira reserva ornitológica da Europa), com milhares de aves anilhadas, destacando-se as mais de 20.000 rolas - ainda hoje um recorde.
Retomemos o desenrolar da história. No início dos anos setenta viria o Portugal do Veraneio. Mindelo ia tornar-se uma das praias mais conhecidas do Norte, recebendo centenas de casas de férias e milhares de banhistas apesar das águas frias e da forte nortada. A ganância quase matou a galinha dos ovos de ouro: construiu-se nas dunas e pinhais, a areia foi transformada em cimento, os esgotos começaram a misturar-se com as águas do mar. A ROM foi praticamente esquecida.
Mais tarde surgiu o Portugal Urbano. A Área Metropolitana do Porto cresceu e estendeu os seus braços: o IC1 (actual A28, ainda sem portagens) e agora o metro, colocaram a ROM a 30 minutos do centro do Porto. Agora já não se regressa a Mindelo ao fim-de-semana, mas ao final do dia. De 1958 a 2000 os terrenos urbanos e industriais aumentaram 600%: passaram de 4% a 26% da área total, com um crescimento médio de 89 m2 por dia.
Ainda assim a ROM resistiu e é hoje a última área do litoral do Grande Porto que não está construída, qual museu vivo do que foi a nossa paisagem: mar, praias e dunas, pinhais e campos agrícolas, ribeiros e pequenas lagoas, num mosaico único e entrelaçado de cores e perfumes. Aqui podem observar-se mais de 100 espécies de aves diferentes, entre rolas e garças, águias e galinhas d’água, borrelhos e gaios, chapins e pica-paus, chascos e narcejas, rabirruivos e andorinhas, cartaxos e alvéolas, abibes e patos, maçaricos e cucos, corujas e mochos, poupas e pegas, carriças e rouxinóis, piscos e tordos, pintassilgos e escrevedeiras… e ainda 14 das 17 espécies de anfíbios que existem em Portugal, 14 espécies de mamíferos, plantas dunares endémicas do litoral norte e muito mais.
E, finalmente, podem descobrir-se (facilmente) todos os destroços do naufrágio do nosso modelo de desenvolvimento: o lixo espalhado na terra e na areia, as árvores carbonizadas, o mar que entra pelas casas dentro, o cheiro fétido das águas inquinadas.
Anuncia-se para breve a criação de uma área protegida reclassificada ao abrigo da nova lei, passando a ROM finalmente a fazer parte da rede oficial de áreas protegidas, a par com o Parque Natural da Peneda-Gerês e todas as outras. Com direito a Centro de Educação Ambiental, percursos pedestres bem delineados, novas árvores e ribeiros limpos, negócios verdes e tecnologias sustentáveis. Ganhará o ambiente e a economia e acima de tudo a nossa qualidade de Vida. É o culminar da dedicação de milhares de pessoas que se uniram num movimento cívico para defender este espaço e que provaram uma coisa maravilhosa: a mobilização ambiental funciona. Na praia, nas ruas, porta-a-porta, com cartazes, folhetos, debates e exposições, estudos e abaixo-assinados, com os alunos das escolas envolvidos em peças de teatro ou actividades de descoberta da natureza, a ROM renasceu e entrou no coração das pessoas. Como consequência imediata entrou definitivamente na agenda política.
Um dia, visitar a ROM será como visitar um centro comercial dedicado à conservação da natureza, lazer e educação ambiental, exemplo máximo do desenvolvimento sustentável. Com tudo muito arrumadinho, atractivo e com o metro à porta. Visitar hoje a ROM é como visitar uma velha mercearia de esquina: está lá tudo (o Portugal Natural e o Humano), com todos os seus encantos e desencantos que nos marcam de forma indelével. Passear ao longo das prateleiras pode não ser muito confortável, mas podemos facilmente descobrir alguma coisa que ninguém via há muitos anos (uma ave desaparecida? um velho roleiro?) ou que acabou de chegar (uma criança de bússola no dedo a praticar orientação, umas dezenas de voluntários a limpar o lixo ou os alunos da Universidade do Porto nas suas investigações). Aqui o Passado e o Futuro fundem-se num presente de aniversário: são 50 anos de Escola de Vida.

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